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quinta-feira, agosto 17, 2006

História do Teatro - Teatro Primitivo

O Teatro Primitivo

O teatro é tão velho quanto a humanidade. Existem formas primitivas desde os primórdios do homem. A transformação numa outra pessoa é uma das formas arquetípicas da expressão humana. O raio de ação do teatro, portanto, inclui a pantomima de caça dos povos da idade do gelo e as categorias dramáticas diferenciadas dos tempos modernos.

O encanto mágico do teatro, num sentido mais amplo, está na capacidade inexaurível de apresentar-se aos olhos do público sem revelar seu segredo pessoal. O xamã que é o porta-voz do deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz a vida à obra do poeta – todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais verdadeira. Converter essa conjuração em “teatro” pressupõe duas coisas: a elevação do artista acima das leis que governam a vida cotidiana, sua transformação no mediador de um vislumbre mais alto; e a presença de espectadores preparados para receber a mensagem desse vislumbre.

Do ponto de vista da evolução cultural, a diferença essencial entre formas de teatro primitivas e mais avançadas é o número de acessórios cênicos à disposição do ator para expressar sua mensagem. O artista de culturas primitivas e primevas arranja-se com um chocalho de cabaça e um apelo de animal; a ópera barroca mobiliza toda a parafernália cênica de sua época. Ionesco desordena o palco com cadeiras e faz uma proclamação surda-muda da triste nulidade da incapacidade humana. O século XX pratica a arte da redução. Qualquer coisa além de uma gestualização desamparada ou um ponto de luz tende a parecer excessiva.

Os espetáculos solos do mímico Marcel Marceau são um exemplo soberbo do teatro atemporal. Fornecem-nos vislumbres de pessoas de todos os tempos e lugares, da dança e do drama de culturas antigas, da pantomima das culturas altamente desenvolvidas da Ásia, da mímica da Antigüidade, da Commedia dell’arte. Num trabalho intitulado “Juventude, Maturidade, Velhice, Morte”, alguns poucos minutos é tudo de que Marceau necessita para um retrato em alta velocidade da vida do homem e nele atinge uma intensidade avassaladora de expressividade dramática elementar. Como o próprio Marcel diz, a pantomima é a “arte de identificar o homem com a natureza e com os elementos próximos de nós”. Ele continua, notando que a mímica pode “criar a ilusão do tempo”. O corpo do ator torna-se um instrumento que substitui uma orquestra inteira, uma modalidade para expressar a mais pessoal e, ao mesmo tempo, a mais universal mensagem.

O artista que necessita apenas de seu corpo para evocar mundos inteiros e percorre a escala completa das emoções é representativo da arte de expressão primitiva do teatro. O pré-histórico e o moderno manifestam-se em sua pessoa. Discutindo o teatro das tribos primitivas em seu livro Cenalora, Oskar Eberle diz: “O teatro primitivo real é arte incorporada na forma humana e abrangendo todas as possibilidades do corpo informado pelo espírito; ele é, simultaneamente, a mais primitiva e mais multiforme, e de qualquer maneira a mais velha arte da humanidade. Por essa razão é ainda a mais humana, a mais comovente arte. Arte imortal”.

Podemos aprender sobre o teatro primitivo pesquisando três fontes: as tribos aborígines, que têm pouco contato com o resto do mundo e cujo estilo de vida e pantomimas mágicas devem portanto ser próximos daquilo que nós presumimos ser o estágio primordial da humanidade; as pinturas das cavernas pré-históricas e entalhes em rochas e ossos; e a inesgotável riqueza de danças mímicas e costumes populares que sobreviveram pelo mundo afora.

O teatro dos povos primitivos assenta-se no amplo alicerce dos impulsos vitais, primários, retirando deles seus misteriosos poderes de magia, conjuração, metamorfose – dos encantamentos de caça dos nômades da Idade da Pedra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores dos campos, dos ritos de iniciação, totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos.

A forma e o conteúdo da expressão teatral são condicionados pelas necessidades da vida e pelas concepções religiosas. Dessas concepções um indivíduo extrai as forças elementares que transformam o homem em um meio capaz de transcender-se a seus semelhantes.

O homem personificou os poderes da natureza. Transformou o Sol e a Lua, o vento e o mar em criaturas vivas que brigam, disputam e lutam entre si e que podem ser influenciadas a favorecer o homem por meio de sacrifícios, orações, cerimônias e danças.

Não somente os festivais de Dionísio da antiga Atenas, mas a Pré-história, a história da religião, a etnologia e o folclore oferecem um material abundante sobre danças rituais e festivais das mais diversas formas que carregam em si as sementes do teatro. Mas o desenvolvimento e a harmonização do drama e do teatro demandam forças criativas que fomentem seu crescimento; é também necessária uma auto-afirmação urbana por parte do indivíduo, junto ao uma superestrutura metafísica. Sempre que essas condições foram preenchidas seguiu-se um florescimento do teatro. Quanto ao teatro primitivo, o reverso do seu desenvolvimento implica que a satisfação do vislumbre superior, em cada estágio, era conquistada às custas de alguma parte de sua força original.

É fascinante traçar esse desenvolvimento pelas várias regiões do mundo e ver como, quando e sob que auspícios ele se deu. Há clara evidência de que o processo sempre seguiu o mesmo curso. Hoje está completo em quase toda parte, e os resultados são contraditórios. Nas poucas áreas intocadas, onde as tribos aborígines têm ainda de levar a cabo o processo, a civilização moderna provoca saltos erráticos, mais do que um desenvolvimento equilibrado.

Para o historiador de teatro, um estudo das formas pré-históricas revela paralelos sinóticos que o seduzem a traçar o desenvolvimento da humanidade mediante o fenômeno do “teatro”. Conquanto nenhuma outra forma de arte possa fazer essa reivindicação com mais propriedade, é também verdade que nenhuma outra forma de arte é tão vulnerável à contestação dessa reivindicação.

A forma de arte começa com a epifania do deus e, em termos puramente utilitários, com o esforço humano para angariar o favorecimento e a ajuda do deus. Os ritos de fertilidade que hoje são comuns entre os índios Cherokees quando semeiam e colhem seu milho têm seu contraponto nas festividades da corte japonesa, mímica e musicalmente mais sofisticada, em honra do arroz; assemelham-se também ao antigo festival da espiga de trigo dourada, celebrado anualmente em Elêusis pelas mulheres da Grécia.

Os mistérios de Elêusis são um caso limite significativo. São a expressão de uma fase final altamente desenvolvida, que, embora potencialmente teatral, não leva ao teatro. Como os ritos secretos de iniciação masculinos, eles carecem do segundo componente do teatro – os espectadores. O drama da Antigüidade nasceria da ampla arena do Teatro de Dionísio em Atenas, totalmente à vista dos cidadãos reunidos, não no crepúsculo místico do santuário de Deméter em Elêusis.

O teatro primitivo utilizava acessórios exteriores, exatamente como seu sucessor altamente desenvolvido o faz. Máscaras e figurinos, acessórios de contra-regragem, cenários e orquestras eram comuns, embora na mais simples forma concebível. Os caçadores da Idade do Gelo que se reuniam na caverna de Montespan em torno de uma figura estática de um urso estavam eles próprios mascarados como ursos. Em um ritual alegórico-mágico, matavam a imagem do urso para assegurar seu sucesso na caçada.

A dança do urso da Idade da Pedra nas cavernas rochosas da França, em Montespan ou Lascaux, tem seu paralelo nas festas do troféu do urso da tribo Ainu do Japão pré-histórico. Em nossa própria época, é encontrado entre algumas tribos indígenas da América do Norte e também nas florestas da África e da Austrália, por exemplo, nas danças do búfalo dos índios Mandan, nas danças corroboree australianas e nos rituais pantomímicos do canguru, do meu ou da foca de várias tribos nativas. Em cada nova versão e variadas roupagens mitológicas, o primitivo ritual de caça sobrevive na Europa Central; nas danças guerreiras rituais germânicas, na dança da luta de Odin com o lobo Fenris (como aparece na insígnia de Torslunda do século VI), e em todas as personificações da “caçada selvagem” da baixa Idade Média, indo desde o mesnie Hellequin francês ao Arlecchino da Commedia dell’arte.

Existe uma estreita correlação entre a mágica que antecede a caçada – onde a presa é simbolicamente morta – ou o subseqüente rito de expiação e as práticas dos xamãs. Meditação, drogas, dança, música e ruídos ensurdecedores causam o estado de transe no qual o xamã estabelece um diálogo com deuses e demônios. Seu contato visionário como outro mundo lhe confere poder “mágico” para curar doenças, fazer chover, destruir o inimigo e fazer nascer o amor. Essa convicção do xamã, de que ele pode fazer com que os espíritos venham em seu auxílio induzem-no a jogar com eles.

“Além do transe, o xamã utiliza-se de todo tipo de meios de representação artísticos; ele é freqüentemente muito mais um artista, e deve ter sido ainda mais em tempos ancestrais”. (Andréas Lommel).

As raízes do xamanismo como uma “técnica” psicológica particular das culturas caçadoras podem ser remontadas ao período Magdaleniano no sul da França, ou seja, aproximadamente entre 15.000 e 800 a.C., e portanto aos exemplos de pantomimas de magia de caça retratadas nas pinturas e cavernas.

Concebido e representado em termos zoomórficos, o panteão de espíritos das civilizações da caça sobrevive na máscara: naquela do “espírito mensageiro” em forma de animal, no totemismo e nas máscaras de demônios-bestas dos povos da Ásia Central e Setentrional, e das tribos da Indonésia, Micronésia e Polinésia, dos Lapps e dos índios norte-americanos.

Aquele que usa a máscara perde a identidade. Ele está preso – literalmente “possuído” – pelo espírito daquilo que personifica, e os espectadores participam dessa transfiguração. O dançarino javanês do Djaram-képang, que usa a máscara de um cavalo e pula de forma grotesca, cavalgando uma vara de bambu, é alimentado com palha.

Aromas inebriantes e ritmos estimulantes reforçam os efeitos do teatro primitivo, uma arte em que tanto aquele que atua como os espectadores escapam de dentro de si mesmos. Oskar Eberle escreve: “O teatro primitivo é uma grande ópera”. Uma grande ópera ao ar livre, deveríamos acrescentar, que em muitos casos é intensificada pela cena noturna irreal, na qual a luz das fogueiras bruxuleia nos rostos dos “demônios” dançarinos. O palco do teatro primitivo é uma área aberta de terra batida. Seus equipamentos de palco podem incluir um totem fixo no centro, um feixe de lanças espetadas no chão, um animal abatido, um monte de trigo, milho, arroz ou cana-de-açúcar.

Da mesma forma, as nove mulheres da pintura rupestre paleolítica de Cogul dançam em torno da figura de um homem; ou o povo de Israel dançava em torno de bezerro de ouro; ou os índios mexicanos faziam sacrifícios, jogos e dançavam , invocando seus deuses; ou, atualmente, os dançarinos totêmicos australianos se reúnem quando o espírito ancestral faz sentir sua presença (quando soam os mugidos do touro). Assim, também, vestígios do teatro primitivo sobrevivem nos costumes populares na dança em volta do mastro de maio ou da fogueira de São João. É assim que o teatro ocidental começou, nas danças do templo de Dionísio aos pés da Acrópole.

Além da dança coral e do teatro de arena, o teatro primitivo também fez uso de procissões para suas celebrações rituais de magia. As visitas dos deuses egípcios envolviam cortejos – os sacerdotes que realizavam o sacrifício guiavam procissões que incluíam cantores, bailarinas e músicos; a estátua de Osíris era transportada a Abidos numa barca. Os xiitas persas começavam a representação da paixão de Hussein com procissões de exorcismo. Todos os anos, em março, os índios Hopi da América do Norte realizam sua dança da Grande Serpente numa procissão cuidadosamente organizada de acordo com modelo determinado. Com troncos e galhos constroem seis ou sete salões cerimoniais (kivas) para as fases distintas da dança. Existe até mesmo um “diretor de iluminação”, que apaga a pilha de lenha ardente em cada kiva tão logo a procissão de dançarinos passa.

Diversas cerimônias místicas e mágicas estão envolvias nos ritos de iniciação de muitos povos primitivos, nos costumes que “rodeiam” a entrada da criança no convívio dos adultos. Máscaras ancestrais são usadas numa peça com mímica. Em sua primeira participação no cerimonial, o neófito aprende o significado das máscaras, dos costumes, dos textos rituais e dos instrumentos musicais. Contam-lhe que negligenciar o mais ínfimo detalhe pode trazer incalculáveis desgraças à tribo inteira. Na ilha de Gaua, nas Novas Hébridas, os anciãos assistem criticamente à primeira dança dos jovens iniciados. Se um deles comete um erro, é punido com uma flechada.

Por outro lado, em todos os lugares e épocas o teatro incorporou tanto a bufonaria grotesca quanto a severidade ritual. Podemos encontrar elementos farsescos nas formas mais primitivas. Danças e pantomimas de animais possuem uma tendência a priori para o grotesco. No memento em que o nó do culto afrouxa, o instinto da mímica passa a provocar o riso. Situações e material são tirados da vida cotidiana. Quando o buscador de mel na peça homônima das Filipinas se mete nos mais variados infortúnios, é recompensado com gargalhadas tão persistentes quanto o são, também, os atores da pantomima parodística “O Encontro como Homem Branco”, no bosque australiano. O nativo pinta seu rosto de ocre brilhante, põe um chapéu de palha amarelo, enrola juncos ao redor das pernas – e a imagem do colono branco, calçado com polainas, está completa. O traje dá a chave para a improvisação – uma remota, mas talvez nem tanto, pré-figuração da Commedia dell’arte.

À medida que as sociedades tribais tornavam-se cada vez mais organizadas, uma espécie de atuação profissional desenvolveu-se entre várias sociedades primitivas. Entre os Areoi da Polinésia e os nativos da Nova Pomerânia, existiam troupes itinerantes que viajavam de aldeia em aldeia e de ilha em ilha. O teatro, enquanto compensação para a rotina da vida, pode ser encontrado onde quer que as pessoas se reúnam na esperança da magia que as transportará para uma realidade mais elevada. Isto é verdade independentemente de a magia acontecer num pedaço de terra nua, numa cabana de bambu, numa plataforma ou num moderno palácio multimídia de concreto e vidro. É verdade, mesmo se o efeito final for de uma desilusão brutal.

A máscara mais altiva e a mais impressionante pompa não podem salvar o Imperador Jones, de O’Neal, do pesadelo da autodestruição. Os antigos poderes xamânicos esmagam-no numa lúgubre noite de luar ao som de tambores africanos. Nesta peça expressionista, O’Neil exalta os “pequenos medos sem forma”, transformando-os no ameaçador frenesi do curandeiro do Congo, cujo chocalho de ossos marca o tempo para o ribombar selvagem dos tambores. Um eco estridente de ritos primitivos de sacrifício ronda o palco do século XX. Como se aflorasse do tronco da árvore, o curandeiro, de acordo com as instruções de O’Neil, bate os pés e inicia uma canção monótona.

“Gradualmente sua dança se transforma numa narrativa de pantomima, sua canção é um encantamento, uma fórmula mágica para apaziguar a fúria de alguma divindade que existe sacrifício. Ele escapa, está possuído por demônios, ele se esconde... salta para a margem do rio. Ele estira os braços e chama por algum Deus dentro de sua profundeza. Então, começa a recuar vagarosamente, com os braços ainda para fora. A cabeça enorme de um crocodilo aparece na margem, e seus olhos verdes e brilhantes fixam-se sobre Jones”.

Numa montagem de 1933, o cenógrafo americano Jo Mielziner utilizou uma enorme cabeça de Olmeca para o primitivo altar de pedra requerido pelo texto. Figurinos africanos, caribenhos e pré-colombianos combinam-se num pesadelo do passado. O teatro primitivo ressurge e age sobre nossos medos existenciais modernos.

O próximo artigo desta série é EGITO E ANTIGO ORIENTE