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quinta-feira, agosto 17, 2006

História do Teatro - Índice


As Civilizações Islâmicas

  • Introdução
  • Pérsia
  • Turquia




História do Teatro - Teatro Primitivo

O Teatro Primitivo

O teatro é tão velho quanto a humanidade. Existem formas primitivas desde os primórdios do homem. A transformação numa outra pessoa é uma das formas arquetípicas da expressão humana. O raio de ação do teatro, portanto, inclui a pantomima de caça dos povos da idade do gelo e as categorias dramáticas diferenciadas dos tempos modernos.

O encanto mágico do teatro, num sentido mais amplo, está na capacidade inexaurível de apresentar-se aos olhos do público sem revelar seu segredo pessoal. O xamã que é o porta-voz do deus, o dançarino mascarado que afasta os demônios, o ator que traz a vida à obra do poeta – todos obedecem ao mesmo comando, que é a conjuração de uma outra realidade, mais verdadeira. Converter essa conjuração em “teatro” pressupõe duas coisas: a elevação do artista acima das leis que governam a vida cotidiana, sua transformação no mediador de um vislumbre mais alto; e a presença de espectadores preparados para receber a mensagem desse vislumbre.

Do ponto de vista da evolução cultural, a diferença essencial entre formas de teatro primitivas e mais avançadas é o número de acessórios cênicos à disposição do ator para expressar sua mensagem. O artista de culturas primitivas e primevas arranja-se com um chocalho de cabaça e um apelo de animal; a ópera barroca mobiliza toda a parafernália cênica de sua época. Ionesco desordena o palco com cadeiras e faz uma proclamação surda-muda da triste nulidade da incapacidade humana. O século XX pratica a arte da redução. Qualquer coisa além de uma gestualização desamparada ou um ponto de luz tende a parecer excessiva.

Os espetáculos solos do mímico Marcel Marceau são um exemplo soberbo do teatro atemporal. Fornecem-nos vislumbres de pessoas de todos os tempos e lugares, da dança e do drama de culturas antigas, da pantomima das culturas altamente desenvolvidas da Ásia, da mímica da Antigüidade, da Commedia dell’arte. Num trabalho intitulado “Juventude, Maturidade, Velhice, Morte”, alguns poucos minutos é tudo de que Marceau necessita para um retrato em alta velocidade da vida do homem e nele atinge uma intensidade avassaladora de expressividade dramática elementar. Como o próprio Marcel diz, a pantomima é a “arte de identificar o homem com a natureza e com os elementos próximos de nós”. Ele continua, notando que a mímica pode “criar a ilusão do tempo”. O corpo do ator torna-se um instrumento que substitui uma orquestra inteira, uma modalidade para expressar a mais pessoal e, ao mesmo tempo, a mais universal mensagem.

O artista que necessita apenas de seu corpo para evocar mundos inteiros e percorre a escala completa das emoções é representativo da arte de expressão primitiva do teatro. O pré-histórico e o moderno manifestam-se em sua pessoa. Discutindo o teatro das tribos primitivas em seu livro Cenalora, Oskar Eberle diz: “O teatro primitivo real é arte incorporada na forma humana e abrangendo todas as possibilidades do corpo informado pelo espírito; ele é, simultaneamente, a mais primitiva e mais multiforme, e de qualquer maneira a mais velha arte da humanidade. Por essa razão é ainda a mais humana, a mais comovente arte. Arte imortal”.

Podemos aprender sobre o teatro primitivo pesquisando três fontes: as tribos aborígines, que têm pouco contato com o resto do mundo e cujo estilo de vida e pantomimas mágicas devem portanto ser próximos daquilo que nós presumimos ser o estágio primordial da humanidade; as pinturas das cavernas pré-históricas e entalhes em rochas e ossos; e a inesgotável riqueza de danças mímicas e costumes populares que sobreviveram pelo mundo afora.

O teatro dos povos primitivos assenta-se no amplo alicerce dos impulsos vitais, primários, retirando deles seus misteriosos poderes de magia, conjuração, metamorfose – dos encantamentos de caça dos nômades da Idade da Pedra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros lavradores dos campos, dos ritos de iniciação, totemismo e xamanismo e dos vários cultos divinos.

A forma e o conteúdo da expressão teatral são condicionados pelas necessidades da vida e pelas concepções religiosas. Dessas concepções um indivíduo extrai as forças elementares que transformam o homem em um meio capaz de transcender-se a seus semelhantes.

O homem personificou os poderes da natureza. Transformou o Sol e a Lua, o vento e o mar em criaturas vivas que brigam, disputam e lutam entre si e que podem ser influenciadas a favorecer o homem por meio de sacrifícios, orações, cerimônias e danças.

Não somente os festivais de Dionísio da antiga Atenas, mas a Pré-história, a história da religião, a etnologia e o folclore oferecem um material abundante sobre danças rituais e festivais das mais diversas formas que carregam em si as sementes do teatro. Mas o desenvolvimento e a harmonização do drama e do teatro demandam forças criativas que fomentem seu crescimento; é também necessária uma auto-afirmação urbana por parte do indivíduo, junto ao uma superestrutura metafísica. Sempre que essas condições foram preenchidas seguiu-se um florescimento do teatro. Quanto ao teatro primitivo, o reverso do seu desenvolvimento implica que a satisfação do vislumbre superior, em cada estágio, era conquistada às custas de alguma parte de sua força original.

É fascinante traçar esse desenvolvimento pelas várias regiões do mundo e ver como, quando e sob que auspícios ele se deu. Há clara evidência de que o processo sempre seguiu o mesmo curso. Hoje está completo em quase toda parte, e os resultados são contraditórios. Nas poucas áreas intocadas, onde as tribos aborígines têm ainda de levar a cabo o processo, a civilização moderna provoca saltos erráticos, mais do que um desenvolvimento equilibrado.

Para o historiador de teatro, um estudo das formas pré-históricas revela paralelos sinóticos que o seduzem a traçar o desenvolvimento da humanidade mediante o fenômeno do “teatro”. Conquanto nenhuma outra forma de arte possa fazer essa reivindicação com mais propriedade, é também verdade que nenhuma outra forma de arte é tão vulnerável à contestação dessa reivindicação.

A forma de arte começa com a epifania do deus e, em termos puramente utilitários, com o esforço humano para angariar o favorecimento e a ajuda do deus. Os ritos de fertilidade que hoje são comuns entre os índios Cherokees quando semeiam e colhem seu milho têm seu contraponto nas festividades da corte japonesa, mímica e musicalmente mais sofisticada, em honra do arroz; assemelham-se também ao antigo festival da espiga de trigo dourada, celebrado anualmente em Elêusis pelas mulheres da Grécia.

Os mistérios de Elêusis são um caso limite significativo. São a expressão de uma fase final altamente desenvolvida, que, embora potencialmente teatral, não leva ao teatro. Como os ritos secretos de iniciação masculinos, eles carecem do segundo componente do teatro – os espectadores. O drama da Antigüidade nasceria da ampla arena do Teatro de Dionísio em Atenas, totalmente à vista dos cidadãos reunidos, não no crepúsculo místico do santuário de Deméter em Elêusis.

O teatro primitivo utilizava acessórios exteriores, exatamente como seu sucessor altamente desenvolvido o faz. Máscaras e figurinos, acessórios de contra-regragem, cenários e orquestras eram comuns, embora na mais simples forma concebível. Os caçadores da Idade do Gelo que se reuniam na caverna de Montespan em torno de uma figura estática de um urso estavam eles próprios mascarados como ursos. Em um ritual alegórico-mágico, matavam a imagem do urso para assegurar seu sucesso na caçada.

A dança do urso da Idade da Pedra nas cavernas rochosas da França, em Montespan ou Lascaux, tem seu paralelo nas festas do troféu do urso da tribo Ainu do Japão pré-histórico. Em nossa própria época, é encontrado entre algumas tribos indígenas da América do Norte e também nas florestas da África e da Austrália, por exemplo, nas danças do búfalo dos índios Mandan, nas danças corroboree australianas e nos rituais pantomímicos do canguru, do meu ou da foca de várias tribos nativas. Em cada nova versão e variadas roupagens mitológicas, o primitivo ritual de caça sobrevive na Europa Central; nas danças guerreiras rituais germânicas, na dança da luta de Odin com o lobo Fenris (como aparece na insígnia de Torslunda do século VI), e em todas as personificações da “caçada selvagem” da baixa Idade Média, indo desde o mesnie Hellequin francês ao Arlecchino da Commedia dell’arte.

Existe uma estreita correlação entre a mágica que antecede a caçada – onde a presa é simbolicamente morta – ou o subseqüente rito de expiação e as práticas dos xamãs. Meditação, drogas, dança, música e ruídos ensurdecedores causam o estado de transe no qual o xamã estabelece um diálogo com deuses e demônios. Seu contato visionário como outro mundo lhe confere poder “mágico” para curar doenças, fazer chover, destruir o inimigo e fazer nascer o amor. Essa convicção do xamã, de que ele pode fazer com que os espíritos venham em seu auxílio induzem-no a jogar com eles.

“Além do transe, o xamã utiliza-se de todo tipo de meios de representação artísticos; ele é freqüentemente muito mais um artista, e deve ter sido ainda mais em tempos ancestrais”. (Andréas Lommel).

As raízes do xamanismo como uma “técnica” psicológica particular das culturas caçadoras podem ser remontadas ao período Magdaleniano no sul da França, ou seja, aproximadamente entre 15.000 e 800 a.C., e portanto aos exemplos de pantomimas de magia de caça retratadas nas pinturas e cavernas.

Concebido e representado em termos zoomórficos, o panteão de espíritos das civilizações da caça sobrevive na máscara: naquela do “espírito mensageiro” em forma de animal, no totemismo e nas máscaras de demônios-bestas dos povos da Ásia Central e Setentrional, e das tribos da Indonésia, Micronésia e Polinésia, dos Lapps e dos índios norte-americanos.

Aquele que usa a máscara perde a identidade. Ele está preso – literalmente “possuído” – pelo espírito daquilo que personifica, e os espectadores participam dessa transfiguração. O dançarino javanês do Djaram-képang, que usa a máscara de um cavalo e pula de forma grotesca, cavalgando uma vara de bambu, é alimentado com palha.

Aromas inebriantes e ritmos estimulantes reforçam os efeitos do teatro primitivo, uma arte em que tanto aquele que atua como os espectadores escapam de dentro de si mesmos. Oskar Eberle escreve: “O teatro primitivo é uma grande ópera”. Uma grande ópera ao ar livre, deveríamos acrescentar, que em muitos casos é intensificada pela cena noturna irreal, na qual a luz das fogueiras bruxuleia nos rostos dos “demônios” dançarinos. O palco do teatro primitivo é uma área aberta de terra batida. Seus equipamentos de palco podem incluir um totem fixo no centro, um feixe de lanças espetadas no chão, um animal abatido, um monte de trigo, milho, arroz ou cana-de-açúcar.

Da mesma forma, as nove mulheres da pintura rupestre paleolítica de Cogul dançam em torno da figura de um homem; ou o povo de Israel dançava em torno de bezerro de ouro; ou os índios mexicanos faziam sacrifícios, jogos e dançavam , invocando seus deuses; ou, atualmente, os dançarinos totêmicos australianos se reúnem quando o espírito ancestral faz sentir sua presença (quando soam os mugidos do touro). Assim, também, vestígios do teatro primitivo sobrevivem nos costumes populares na dança em volta do mastro de maio ou da fogueira de São João. É assim que o teatro ocidental começou, nas danças do templo de Dionísio aos pés da Acrópole.

Além da dança coral e do teatro de arena, o teatro primitivo também fez uso de procissões para suas celebrações rituais de magia. As visitas dos deuses egípcios envolviam cortejos – os sacerdotes que realizavam o sacrifício guiavam procissões que incluíam cantores, bailarinas e músicos; a estátua de Osíris era transportada a Abidos numa barca. Os xiitas persas começavam a representação da paixão de Hussein com procissões de exorcismo. Todos os anos, em março, os índios Hopi da América do Norte realizam sua dança da Grande Serpente numa procissão cuidadosamente organizada de acordo com modelo determinado. Com troncos e galhos constroem seis ou sete salões cerimoniais (kivas) para as fases distintas da dança. Existe até mesmo um “diretor de iluminação”, que apaga a pilha de lenha ardente em cada kiva tão logo a procissão de dançarinos passa.

Diversas cerimônias místicas e mágicas estão envolvias nos ritos de iniciação de muitos povos primitivos, nos costumes que “rodeiam” a entrada da criança no convívio dos adultos. Máscaras ancestrais são usadas numa peça com mímica. Em sua primeira participação no cerimonial, o neófito aprende o significado das máscaras, dos costumes, dos textos rituais e dos instrumentos musicais. Contam-lhe que negligenciar o mais ínfimo detalhe pode trazer incalculáveis desgraças à tribo inteira. Na ilha de Gaua, nas Novas Hébridas, os anciãos assistem criticamente à primeira dança dos jovens iniciados. Se um deles comete um erro, é punido com uma flechada.

Por outro lado, em todos os lugares e épocas o teatro incorporou tanto a bufonaria grotesca quanto a severidade ritual. Podemos encontrar elementos farsescos nas formas mais primitivas. Danças e pantomimas de animais possuem uma tendência a priori para o grotesco. No memento em que o nó do culto afrouxa, o instinto da mímica passa a provocar o riso. Situações e material são tirados da vida cotidiana. Quando o buscador de mel na peça homônima das Filipinas se mete nos mais variados infortúnios, é recompensado com gargalhadas tão persistentes quanto o são, também, os atores da pantomima parodística “O Encontro como Homem Branco”, no bosque australiano. O nativo pinta seu rosto de ocre brilhante, põe um chapéu de palha amarelo, enrola juncos ao redor das pernas – e a imagem do colono branco, calçado com polainas, está completa. O traje dá a chave para a improvisação – uma remota, mas talvez nem tanto, pré-figuração da Commedia dell’arte.

À medida que as sociedades tribais tornavam-se cada vez mais organizadas, uma espécie de atuação profissional desenvolveu-se entre várias sociedades primitivas. Entre os Areoi da Polinésia e os nativos da Nova Pomerânia, existiam troupes itinerantes que viajavam de aldeia em aldeia e de ilha em ilha. O teatro, enquanto compensação para a rotina da vida, pode ser encontrado onde quer que as pessoas se reúnam na esperança da magia que as transportará para uma realidade mais elevada. Isto é verdade independentemente de a magia acontecer num pedaço de terra nua, numa cabana de bambu, numa plataforma ou num moderno palácio multimídia de concreto e vidro. É verdade, mesmo se o efeito final for de uma desilusão brutal.

A máscara mais altiva e a mais impressionante pompa não podem salvar o Imperador Jones, de O’Neal, do pesadelo da autodestruição. Os antigos poderes xamânicos esmagam-no numa lúgubre noite de luar ao som de tambores africanos. Nesta peça expressionista, O’Neil exalta os “pequenos medos sem forma”, transformando-os no ameaçador frenesi do curandeiro do Congo, cujo chocalho de ossos marca o tempo para o ribombar selvagem dos tambores. Um eco estridente de ritos primitivos de sacrifício ronda o palco do século XX. Como se aflorasse do tronco da árvore, o curandeiro, de acordo com as instruções de O’Neil, bate os pés e inicia uma canção monótona.

“Gradualmente sua dança se transforma numa narrativa de pantomima, sua canção é um encantamento, uma fórmula mágica para apaziguar a fúria de alguma divindade que existe sacrifício. Ele escapa, está possuído por demônios, ele se esconde... salta para a margem do rio. Ele estira os braços e chama por algum Deus dentro de sua profundeza. Então, começa a recuar vagarosamente, com os braços ainda para fora. A cabeça enorme de um crocodilo aparece na margem, e seus olhos verdes e brilhantes fixam-se sobre Jones”.

Numa montagem de 1933, o cenógrafo americano Jo Mielziner utilizou uma enorme cabeça de Olmeca para o primitivo altar de pedra requerido pelo texto. Figurinos africanos, caribenhos e pré-colombianos combinam-se num pesadelo do passado. O teatro primitivo ressurge e age sobre nossos medos existenciais modernos.

O próximo artigo desta série é EGITO E ANTIGO ORIENTE




História do Teatro - Egito e Antigo Oriente

HISTÓRIA DO TEATRO


Egito e Antigo Oriente

A história do Egito e do Antigo Oriente Próximo nos proporciona o registro dos povos que, nos três milênios anteriores a Cristo, lançaram as bases da civilização ocidental. Eram povos atuantes nas regiões que iam desde o rio Nilo aos rios Tigre e Eufrates e ao planalto iraniano, desde o Bósforo até o Golfo Pérsico. Nesta criativa época da humanidade, o Egito instituiu as artes plásticas, a Mesopotâmia, a ciência e Israel, uma religião mundial.

A leste e a oeste do mar Vermelho, o rei-deus do Egito era o único e todo-poderoso legislador, a mais alta autoridade e juiz na terra. A ele rendiam-se homenagens em múltiplas formas de música, dança e diálogo dramático. Nas celebrações dos festivais, em glorificação à vida neste mundo ou no além-mundo, era ele figura central, e não se economizava pompa no que concernia à sua pessoa. Esta era a posição dos dinastas do Egito, dos grandes legisladores sumérios, dos imperadores dos acádios, dos reis-deuses de Ur, dos governantes do império hitita e também dos reis da Síria e da Palestina.

No Egito e por todo o antigo Oriente Próximo, a religião e mistérios, todo pensamento e ação eram determinados pela realeza, o único princípio ordenador. Alexandre, sabiamente respeitoso, submeteu-se a ela em seu triunfante progresso. Visitou o túmulo de Ciro e lhe prestou homenagem, da mesma forma que o próprio Ciro havia prestado homenagens nas tumbas dos grandes reis da Babilônia.

Durante muitos séculos, as fontes das quais emergiu a imagem do antigo Oriente Próximo estiveram limitadas a alguns poucos documentos: o Antigo Testamento, que fala da Sabedoria e da vida luxuosa do Egito, e das narrativas de alguns escritores da Antigüidade, que culpavam uns aos outros por sua “orientação notavelmente pobre”. Mesmo Heródoto, o “pai da História”, que visitou o Egito e a Mesopotâmia no século V a.C., é freqüentemente vago. Seu silêncio sobre os “jardins suspenso de Semíramis” diminui o nosso conhecimento de uma das Sete Maravilhas do mundo, e o fato de o pavilhão do festival do Ano Novo de Nabucodonosor permanecer desconhecido para ele priva os pesquisadores do teatro de valiosas chaves.

Nesse meio tempo, arqueólogos escavaram as ruínas de vastos palácios, de edifícios incrustados de mosaicos para o festival do Ano Novo, e até mesmo cidades inteiras. Historiadores da lei e da religião decifraram o engenhoso código das tabuinhas cuneiformes, que também proporcionaram algumas indicações sobre os espetáculos teatrais de antigamente.

Sabemos do ritual mágico-mítico do “casamento sagrado” dos mesopotâmios e temos fragmentos descobertos das disputas divinas dos sumérios; somos agora capazes de reconstruir a origem do diálogo da dança egípcia de Hator e a organização da paixão de Osíris em Abidos. Sabemos que o mimo e a farsa, também, tinham seu lugar reservado. Havia o anão do faraó, que lançava seus trocadilhos diante do trono e também representava o deus/gnomo Bes nas cerimônias religiosas. Havia os atores mascarados que divertiam as cortes principescas do Oriente Próximo antigo, parodiando os generais inimigos e, mais tarde, na época do crepúsculo dos deuses, zombavam até mesmo dos seres sobrenaturais.

Ao lado dos textos que sobrevivem, as artes plásticas nos fornecem algumas evidências – que deve, entretanto, ser interpretadas com cuidado – a respeito das origens do teatro. As “máscaras” ornamentais do palácio pátrio em Hatra, as máscaras grotescas nas casas dos colonos fenícios e Tharros ou as representações das cabeças dos inimigos derrotados, pendendo de broches dourados e com relevos de pedra – tudo isso dá testemunho de concepções intimamente relacionadas: o poder primitivo da máscara continua a exercer seu efeito mesmo quando ela torna decorativa. Os motivos das máscaras antigas – a despeito de algumas interpretações contraditórias - não impedem , fundamentalmente, especulações a respeito de conexões teatrais, mas mais necessariamente permanecem como suposições no enigmático panorama do terceiro milênio a.C.

O solo pobre e castigado pelo sol do Egito e o Oriente Próximo, irrigado erraticamente por seus rios, assistiu à ascensão e à queda de muitas civilizações. Conheceu o poder dos faraós e testemunhou as invocações do culto de Marduk e Mitra. Tremeu sob a marcha pesada dos arqueiros assírios em suas procissões cerimoniais e sob os pés dos guerreiros macedônios. Viu a princesa aquemênida Roxana, adornada com os trajes nupciais e escoltada por trinta jovens dançarinas,a lado de Alexandre, e ouviu os tambores, flautas e sinos dos músicos partas e sassânidas. Suportou os mastros de madeira que prendiam as cordas para os acrobatas e dançarinos, e silenciou sobre as artes praticadas pela hetera quanto o rei a convocava para dançar em seus aposentos íntimos.


Egito

Na história da humanidade, nada deu origem a monumentos mais duradouros do que a demonstração da transitoriedade do homem – o culto aos mortos. Ele está manifestado tanto nos túmulos pré-históricos como nas pirâmides e câmaras mortuárias do Egito . Os músicos e dançarinas, banquetes e procissões e as oferendas sacrificiais retratos nos murais dos templos dedicados aos mortos testemunham a preocupação dos egípcios com um além-mundo onde nenhum prazer terreno poderia faltar.

Ao poderoso pedido aos deuses, expresso nas imagens pintadas e esculpidas, adicionava-se a magia da palavra; invocações a Rá, o deus do paraíso, ou a Osíris, o senhor dos mortos, suplicando para que aquele que partia fosse recebido em seus reinos e que os deuses o elevassem como seu semelhante.

A forma dialogada dessas inscrições sepulcrais, os assim chamados textos das pirâmides, deu origem a excitantes especulações. Permitiria-nos os hieróglifos de cinco mil anos com seus fascinantes pictogramas, fazer inferências a respeito do estado do teatro no Egito antigo? A questão foi respondida afirmativamente desde que o brilhante egiptologista Gaston Maspero, em 1882, chamou a atenção para o caráter “dramático” dos textos das pirâmides. Parece certo que as recitações nas cerimônias de coroação e jubileus (Heb seds) eram expressas em forma dramática. Mesmo a apresentação da deusa Ísis, pronunciando uma fórmula mágica para proteger seu filhinho Hórus dos efeitos fatais da picada de um escorpião, parece ter sido dramaticamente concebida.

Um encantamento de caráter diferente foi decifrado na estela de Metternich (assim chamada por encontrar-se preservada no Castelo de Metternich na Boêmia). É um encantamento popular simples, como os que as mães egípcias pronunciam até hoje quando seus filhos são picados pelo escorpião: “Veneno de Tefen, que se derrame no chão, que não avance para dentro deste corpo...”. Achados como esse e inscrições de cantos funerais e recitações não nos dão chaves para as artes teatrais do Egito, mas , ao contrário, levam a alguma confusão.

A mistura entre a apresentação na primeira pessoa e a forma invocativa em traduções antigas sugeriram, enganosamente, um suposto “diálogo”, de forma nenhuma endossado pelas pesquisas mais recentes. Além disso, às oferendas sacerdotais e aos apelos aos deuses, nas câmaras mortuárias falta o componente decisivo do teatro: seu indispensável parceiro criativo,o público.

Ele existe nas danças dramáticas cerimoniais,nas lamentações e choros pantomímicos, e nas apresentações dos mistérios de Osíris em Abidos, que são reminiscentes da peça de paixão. Todos os anos, dezenas de milhares de peregrinos viajavam a Abidos, para participar dos grandes festivais religiosos. Aqui acreditava-se estar enterrada a cabeça de Osíris; Abidos era a Meca dos egípcios. No mistério do deus que se tornou homem – sobre a entrada da emoção humana no reino do sobrenatural, ou a descida do deus às regiões de sofrimento terreno – existe o conflito dramático e, assim , a raiz do teatro.

Osíris é o mais humano de todos os deuses no panteão egípcio. A lenda finalmente transformou o deus da fertilidade num ser de carne e osso. Como o Cristo dos mistérios medievais, Osíris sofre traição e morte – um destino humano. Depois de terminado o seu martírio, as lágrimas e lamentos dos pranteadores são sua justificativa diante dos deuses. Osíris ressuscita e se torna o governador do reino dos mortos.

Os estágios do destino de Osíris constituem as estações do grande mistério de Abidos. Os sacerdotes organizavam a peça e atuavam nela. O clero percebia quão vastas possibilidades de sugestão das massas o mistério oferecia. Testemunho de sua perspicácia é o fato de que mesmo com toda e cada vez maior popularidade do culto a Osíris, com os crescentes recursos das fundações principescas e com a riqueza de suas tumbas e capelas, continuavam a levar em conta o homem do povo. Qualquer um que deixasse uma pedra ou estela memória em Abidos poderia estar seguro das bênçãos de Osíris e de que, após a morte, participaria, “transfigurado”, das cerimônias sagradas e dos ritos no templo, com sua família, exatamente como havia feito em vida.

Existe uma estela de pedra, do oficial da corte Ikhernofret, que viveu durante o reinado de Sesóstris III, na época da décima segunda dinastia. A estela traz gravadas as tarefas de seu donatário, Ikhernofret, concernentes ao templo em Abidos. A parte superior da pedra comemorativa fala da obra de restauração e reforma do templo, levada acabo por Ikhernofret; a parte de baixo (linhas 17-23) referem-se à celebração dos mistérios de Osíris. Não é possível saber, a partir da inscrição, se as fases distintas do mistério, retratando a vida, a morte e a ressurreição do deus, eram encenadas em sucessão imediata, a intervalos de dias, ou até mesmo de semanas. Heirich Schäfer, o primeiro a interpretar os hieróglifos da pedra, conjeturou que os mistérios de Osíris “se estendiam durante uma parte do ano religioso, como os nossos próprios festivais, indo desde o período do Advento até o Pentecostes, constituindo um grande drama”.

A Pedra, entretanto, esclarece as principais características dos mistérios de Osíris na época do Médio Império (2000-1700 a.C.). O relato começa com as palavras: “Eu organizei a partida de Wepwawet quando ele foi resgatar seu pai”. Parece claro, portanto, que o deus Wepwawet, na forma de um chacal, abria as cerimônias. Imediatamente após a figura de Wepwawet “aparecia o deus Osíris, em toda a sua majestade, e em seguida a ele, os nove deuses de seu séqüito. Wepwawet ia na frente, clareando o caminho para ele...”. Em triunfo, Osíris navega em seu navio, a barca de Neschmet, acompanhado dos participantes das cerimônias dos mistérios. São os seus companheiros de armas em sua luta contra seu inimigo Set.

Se devemos conceber o navio de Osíris como barca carregada por terra, então presumivelmente os guerreiros marchavam ao longo dela. Se a jornada era representada num barco real sobre o Nilo, um número de pessoas privilegiadas subiria a bordo para “lutar” ao lado de Osíris. Ikhernofret, alto oficial do governo e favorito do rei, sem dúvida estava entre esses privilegiados, porque lemos em sua inscrição: “Repudiei aqueles que se rebelaram contra a barca Neschmet e combati os inimigos de Osíris”.

Após este prelúdio, seguia-se a “grande partida” do deus, terminado com sua morte. A cena da morte provavelmente não acontecia às vistas do público comum, como a crucificação no Gólgota, mas em segredo. Porém, todos os participantes uniam-se em alta voz às lamentações da esposa de Osíris, Ísis. Heródoto conta, a respeito da cerimônia de Osíris em Busíris, que “muitas dezenas de milhares de pessoas erguiam suas vozes em lamentos”; em Abidos, deveria haver muitas mais.

Na cena seguinte, o deus Tot chega num navio para buscar o cadáver. Então são feitos os preparativos para o enterro. Morto, Osíris é enterrado em Peker, a pouco mais de um quilômetro de distância do templo de Osíris, contra o pano e fundo da larga planície em forma de crescente de Abidos. Numa grande batalha, os inimigos de Osíris são mortos por seu filho Hórus, agora um jovem. Osíris, erguido para uma nova existência no reino da morte, reentra no templo como o governador dos mortos.

Nada se conhece sobre a parte final dos mistérios, que acontecia entre “iniciados”, na parte interna do templo de Abidos. Como os mistérios de Elêusis, esses ritos permaneceram secretos para o público.

Os festivais do culto de Osíris também aconteciam nos grandes templos das cidades de Busíris, Heliópolis, Letópolis e Sais. O festival de Upuaut, deus dos mortos, em Siut, deve ter tido um processo de procissão similar. Aqui também, a imagem ricamente coberta do deus era acompanhada numa procissão solene até seu túmulo.

A cerimônia do erguimento da coluna de Ded, instituída por Amenófis III e sempre observada solenemente nos aniversários de coroação, possuía também elementos teatrais definidos. O túmulo de Kheriuf em Assasi (Tebas) fornece uma representação gráfica da cena: Amenófis e sua esposa estão sentados em tronos no local do levantamento da coluna. Suas filhas, as dezesseis princesas, tocam música com chocalhos e sistros , enquanto seis cantores louvam a Ptá, o deus guardião do império. A parte inferior do relevo de Kheriuf descreve a conclusão da cerimônia do festival: participantes lutando com bastões, numa cena simbólica de combate ritual, no qual os habitantes da cidade também tomavam parte.

Heródoto, no segundo livro de sua história, descreve uma cerimônia similar, observada em homenagem ao deus Ares, embora, a julgar pelo contexto, o deus em questão deva ter sido Hórus. Essa observação, conservada em Papremis, envolve também o combate ritual:

Em Papremis, celebram-se sacrifícios como em qualquer lugar, mas quando o sol começa a se pôr, alguns sacerdotes ocupam-se da imagem do deus; todos os outros sacerdotes, armados com bastões de madeira, ficam à porta do templo. Diante deles se coloca uma multidão de homens, mais de mil deles, também armados com bastões, que tenham algum voto a cumpri. A imagem do deus permanece num pequeno relicário de madeira adornado, e na véspera do festival é, conforme dizem, transportada para outro templo. Os poucos sacerdotes que ainda se ocupam da imagem colocam-na, juntamente com o relicário, num carro com quatro rodas e a levam para o templo. Os outros sacerdotes, que permanecem à porta, impedem-nos de entrar, mas os devotos lutam ao lado do deus e atacam os adversários.Há uma luta feroz, onde cabeças são quebradas e não são poucos os que, acredito, morrem em conseqüência dos ferimentos. Os egípcios, porém, negavam que ocorressem quaisquer mortes”.

O fanatismo ritual que essa cena sugere recorda os ferimentos auto-infligidos das peças xiitas de Hussein, na Pérsia, e os flagelantes da Europa medieval.

Através das épocas do esplendor e declínio dos faraós, o egípcio permaneceu um vassalo dócil. Aceitou as leis impostas pelo rei e os preceitos do seu sacerdócio como mandamentos dos deuses.Esse paciente apego à tradição sufocou as sementes do drama. Para um florescimento das artes dramáticas teria sido necessário o desenvolvimento de um indivíduo livremente responsável que tivesse participação na vida da comunidade, tal como encorajado na democrática Atenas. O cidadão da polis grega, que possuía voz em seu governo, possuíam também a possibilidade de um confronto pessoal com o Estado, com a história, com os deuses.

Faltava ao egípcio o impulso para a rebelião; não conhecia o conflito entre a vontade do homem e a vontade dos deuses, de onde brota a semente do drama. E, por isso, no antigo Egito, a dança, a música e as origens do teatro permaneceram amarradas às tradições do cerimonial religioso e da corte. Por mais de três mil anos as artes plásticas do Egito floresceram, mas o pleno poder do drama jamais foi despertado. (O teatro de sombras, que surgiu Egito durante o século XII d.C., proporcionou estímulos para a representação de lendas populares e eventos históricos. Sua forma e técnica foram inspiradas pelo Oriente).

Foi esta compulsão herdada para a obediência que finalmente subjugou Sinuhe, um oficial do governo de Sesóstris I que ousara fugir para o Oriente Próximo. “Uma procissão funeral será organizada para ti no dia do teu enterro”, o faraó o informou: “o céu estará sobre ti quando fores colocado sobre o esquife e os bois te levarem, e os cantores irão à tua frente quando a dança muu for executada em teu túmulo...”. Sinuhe regressou. A lei que havia governado o desempenho do seu ofício foi mais forte que a rebelião: o poder da tradição esmagou a vontade do indivíduo.

Assim não há indício, e na verdade é contra qualquer probabilidade, que desde esse ponto pudesse seguir-se uma trilha mesmo aproximadamente parecida com aquela que, na Hélade, a partir de uma origem similar na religião, levou ao desenvolvimento da tragédia ática. Para chegar a isso, o primeiro degrau precisaria ter sido uma extensão do mito de modo que contivesse o homem e, depois, um modo particular de ser humano; nenhuma das duas coisas foi encontrada no Egito". (S.Morenz).


Mesopotâmia

No segundo milênio a.C., enquanto os fiéis do Egito faziam peregrinações a Abidos e asseguravam-se das graças divinas erigindo monumentos comemorativos, o povo da Mesopotâmia descobria que o perfil de seus deuses severos e despóticos estava ficando mais suave. Os homens começavam a creditar a eles justiça e a si mesmos, a capacidade de obter a benevolência dos deuses. Estes estavam descendo à terra, tornando-se participantes dos rituais. E, com a descida dos deuses, vem o começo do teatro.

Um dos mais antigos mistérios da Mesopotâmia é baseado na lenda ritual do “matrimônio sagrado” – a união do deus ao homem. Nos templos da Suméria, pantomima, encantamento e música converteram a tradicional representação do banquete para o par divino e humano num grande drama religioso. Os governantes de Ur e Isin fizeram derivar sua realiza divina deste “casamento sagrado”, que o rei e a rainha (ou uma grã sacerdotisa delegada por comando divino) solenizavam após um banquete ritual simbólico.

De acordo com pesquisas recentes, o famoso estandarte-mosaico de Ur, do terceiro milênio a.C., é uma das mais antigas representações do “casamento sagrado”. Essa magnífica obra, com suas figuras compostas por fragmentos de conchas e calcários incrustados num fundo de lápis-lazúli, data de aproximadamente 2700 a.C. e provavelmente foi parte da caixa de ressonância de algum instrumento musical, mais do que um estandarte de guerra.

Do segundo milênio em diante, o “casamento sagrado” foi quase com certeza celebrado uma vez por ano nos maiores templos do império sumeriano. Sacerdotes e sacerdotisas faziam os papéis de rei e rainha, do deus e da deusa da cidade. Não se sabe onde foi traçada a linha divisória entre o ritual e a realidade, mas é certo que o rei Hamurabi (1728-1686 a.C.), o grande reformador da lei sumeriana, riscou o festival do “casamento sagrado” do calendário de sua corte. Hamurabi estabeleceu um novo ideal de realiza: descreveu a si mesmo como um “príncipe humilde, temente aos deuses”, como um “pastor do povo” e “rei da justiça”. Hamurabi nomeou Marduk, até então o deus da cidade da Babilônia, deus universal do império. Um diálogo sumério, que se acredita ter sido uma peça e intitulado A Conversa de Hamurabi com uma Mulher , é devotado ao criador do Código de Hamurabi e é considerado pelos orientalistas um drama cortesão. Retrata a astúcia feminina triunfando sobre um homem brilhante, apaixonado, ainda que envergue os esplêndidos trajes de um rei. É possível que o diálogo tenha sido encenado em alguma corte real rival, ou, após a morte de Hamurabi, até mesmo no palácio na Babilônia. Outro famoso documento sumério, e poema épico em forma de diálogo, Enmerkar e o Senhor de Arata, pode também ter sido um drama secular, apresentado na corte real do período de Isin-Larsa.

É certo que na Mesopotâmia os músicos da corte, tanto homens quanto mulheres, desfrutavam dos favores especiais dos soberanos. Nos templos, sacerdotes vocalistas, jovens cantoras e instrumentistas de ambos os sexos executavam a música ritual nas cerimônias e eram tratados com grande respeito. Uma filha do imperador acádio Naram-Sin é referida como “harpista da deusa lua”. As artes plásticas da Mesopotâmia dão testemunho da riqueza musical que exaltava “a majestade dos deuses" nos grandes festivais. O fato de os artistas do templo serem investidos de uma significação mitológica especial é sugerido pelos musicistas com cabeças de animais sempre vistos em relevos, selos cilíndricos e mosaicos. Os mesopotâmios possuíam um senso de humor desenvolvido. Um diálogo acádio, intitulado O Mestre e o Escravo, assemelha-se ao mimo e às farsas atelanas, o Plauto e à Commedia dell’arte. Os trocadilhos do servo expõem a vacuidade dos pretensos bons conselhos e a relatividade das decisões “bem consideradas”. Recentemente, mais exemplos do teatro secular da Mesopotâmia vieram à luz. O erudito alemão Hartmut Schmökel, por exemplo, interpretou a assim chamada Carta de um Deus como uma brincadeira de um escriba, um outro texto que soava como religioso como um tipo de sátira e um poema heróico como uma paródia grotesca.

As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral. Até agora foram descobertos sete diálogos desse tipo. Todos eles foram compostos durante o período em que a imagem dos deuses sumérios tornou-se humanizada, não tanto em sua aparência externa quanto em suas supostas emoções. Este critério é crucial numa civilização: é a bifurcação na estrada de onde se ramifica o caminho para o teatro – pois o drama se desenvolve a partir do conflito simbolizado na idéia dos deuses transposta para a psicologia humana.

Em forma e conteúdo, os diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios méritos e subestimado os do outro.

Em um dos diálogos, a deusa do trigo, Aschnan, e seu irmão, o deus pastor Lahar, discutem a respeito de qual dos dois é mais útil à humanidade. Em outros, o abrasador verão da Mesopotâmia tenta sobrepujar o brando inverno da Babilônia. Num terceiro, o deus Enki briga com a deusa mãe. Ninmah, mas mostra ser um salvador no grande tema fundamental da mitologia, e retorno do ínfero. Num quarto diálogo, Inana, a deusa da fertilidade, banida para o mundo das sombras, poderá retornar à terra se puder encontrar um substituto. Ela escolhe para este propósito o seu amor, o pastor real Dumuzi, que assim é apontado príncipe do inferno. Com a lenda de Inana e Dumuzi, o ciclo se encerra e termina no “casamento sagrado”. Inana e Dumuzi são o par sagrado original.

Mesmo os sacerdotes mais bem instruídos do período não eram capazes de fazer um conspecto do vasto panteão do antigo Oriente, com seus inumeráveis deuses principais e subsidiários das muitas Cidades-estados separadas. As relações mitológicas são muito mais complexas do que, por exemplo, aquelas existentes entre os conceitos mitológicos da Antigüidade e os do cristianismo primitivo.

No início do século XX, o erudito Peter Jensen procurou estabelecer uma conexão entre Marduk e Cristo, mas não teve sucesso. A assim chamada controvérsia Bíblia-Babel fundamentou-se na suposta existência de um drama ritual que celebrava a morte e a ressurreição de Marduk. Porém, as últimas pesquisas provaram que a interpretação textual em que se assentava esta suposição é insustentável.

No reino de Nabucodonosor, o famoso festival do Ano Novo , em homenagem ao deus da cidade da Babilônia, Marduk , era celebrado em pompa espetacular. O clímax da cerimônia sacrificial de doze dias era a grande procissão, onde o cortejo colorido de Marduk era seguido pelas muitas imagens culturais dos grandes templos do país, simbolizando “uma visita dos deuses”, e pela longa fila de sacerdotes e fiéis. Em pontos predeterminados no caminho pavimentado de vermelho e branco da procissão, até a sede do festival do Ano Novo, a comitiva se detinha para as recitações do epos da Criação e para as pantomimas. Este grande espetáculo cerimonial homenageava os deuses e o soberano, além de assombrar e emocionar o povo. “Era teatro no ambiente e no garbo do culto religioso e demonstra que os antigos mesopotâmios possuíam, pelo menos, um senso de poesia dramática; é preciso que se faça pesquisas mais amplas sobre o culto” (H. Schmökel).

Durante o terceiro e o segundo milênios a.C., outras divindades do Oriente Próximo foram homenageadas de forma semelhante em Ur, Uruk e Nippur; em Assur, Dilbat e Harran; em Mari, Umma e Lagash. Persépolis, a antiga necrópole e cidade palaciana persa, foi fundada especialmente para a celebração do festival do Ano Novo. Aqui, no final do século VI a.C., Dario ergueu o mais esplêndido dos palácios reais persas. E aqui Alexandre, sacrificou a idéia ocidental de humanistas à sua ebriedade com a vitória; após a batalha de Arbela, deixou que o palácio de Dario se consumisse nas chamas.

O próximo artigo desta série é AS CIVILIZAÇÕES ISLÂMICAS

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