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quinta-feira, agosto 17, 2006

História do Teatro - Egito e Antigo Oriente

HISTÓRIA DO TEATRO


Egito e Antigo Oriente

A história do Egito e do Antigo Oriente Próximo nos proporciona o registro dos povos que, nos três milênios anteriores a Cristo, lançaram as bases da civilização ocidental. Eram povos atuantes nas regiões que iam desde o rio Nilo aos rios Tigre e Eufrates e ao planalto iraniano, desde o Bósforo até o Golfo Pérsico. Nesta criativa época da humanidade, o Egito instituiu as artes plásticas, a Mesopotâmia, a ciência e Israel, uma religião mundial.

A leste e a oeste do mar Vermelho, o rei-deus do Egito era o único e todo-poderoso legislador, a mais alta autoridade e juiz na terra. A ele rendiam-se homenagens em múltiplas formas de música, dança e diálogo dramático. Nas celebrações dos festivais, em glorificação à vida neste mundo ou no além-mundo, era ele figura central, e não se economizava pompa no que concernia à sua pessoa. Esta era a posição dos dinastas do Egito, dos grandes legisladores sumérios, dos imperadores dos acádios, dos reis-deuses de Ur, dos governantes do império hitita e também dos reis da Síria e da Palestina.

No Egito e por todo o antigo Oriente Próximo, a religião e mistérios, todo pensamento e ação eram determinados pela realeza, o único princípio ordenador. Alexandre, sabiamente respeitoso, submeteu-se a ela em seu triunfante progresso. Visitou o túmulo de Ciro e lhe prestou homenagem, da mesma forma que o próprio Ciro havia prestado homenagens nas tumbas dos grandes reis da Babilônia.

Durante muitos séculos, as fontes das quais emergiu a imagem do antigo Oriente Próximo estiveram limitadas a alguns poucos documentos: o Antigo Testamento, que fala da Sabedoria e da vida luxuosa do Egito, e das narrativas de alguns escritores da Antigüidade, que culpavam uns aos outros por sua “orientação notavelmente pobre”. Mesmo Heródoto, o “pai da História”, que visitou o Egito e a Mesopotâmia no século V a.C., é freqüentemente vago. Seu silêncio sobre os “jardins suspenso de Semíramis” diminui o nosso conhecimento de uma das Sete Maravilhas do mundo, e o fato de o pavilhão do festival do Ano Novo de Nabucodonosor permanecer desconhecido para ele priva os pesquisadores do teatro de valiosas chaves.

Nesse meio tempo, arqueólogos escavaram as ruínas de vastos palácios, de edifícios incrustados de mosaicos para o festival do Ano Novo, e até mesmo cidades inteiras. Historiadores da lei e da religião decifraram o engenhoso código das tabuinhas cuneiformes, que também proporcionaram algumas indicações sobre os espetáculos teatrais de antigamente.

Sabemos do ritual mágico-mítico do “casamento sagrado” dos mesopotâmios e temos fragmentos descobertos das disputas divinas dos sumérios; somos agora capazes de reconstruir a origem do diálogo da dança egípcia de Hator e a organização da paixão de Osíris em Abidos. Sabemos que o mimo e a farsa, também, tinham seu lugar reservado. Havia o anão do faraó, que lançava seus trocadilhos diante do trono e também representava o deus/gnomo Bes nas cerimônias religiosas. Havia os atores mascarados que divertiam as cortes principescas do Oriente Próximo antigo, parodiando os generais inimigos e, mais tarde, na época do crepúsculo dos deuses, zombavam até mesmo dos seres sobrenaturais.

Ao lado dos textos que sobrevivem, as artes plásticas nos fornecem algumas evidências – que deve, entretanto, ser interpretadas com cuidado – a respeito das origens do teatro. As “máscaras” ornamentais do palácio pátrio em Hatra, as máscaras grotescas nas casas dos colonos fenícios e Tharros ou as representações das cabeças dos inimigos derrotados, pendendo de broches dourados e com relevos de pedra – tudo isso dá testemunho de concepções intimamente relacionadas: o poder primitivo da máscara continua a exercer seu efeito mesmo quando ela torna decorativa. Os motivos das máscaras antigas – a despeito de algumas interpretações contraditórias - não impedem , fundamentalmente, especulações a respeito de conexões teatrais, mas mais necessariamente permanecem como suposições no enigmático panorama do terceiro milênio a.C.

O solo pobre e castigado pelo sol do Egito e o Oriente Próximo, irrigado erraticamente por seus rios, assistiu à ascensão e à queda de muitas civilizações. Conheceu o poder dos faraós e testemunhou as invocações do culto de Marduk e Mitra. Tremeu sob a marcha pesada dos arqueiros assírios em suas procissões cerimoniais e sob os pés dos guerreiros macedônios. Viu a princesa aquemênida Roxana, adornada com os trajes nupciais e escoltada por trinta jovens dançarinas,a lado de Alexandre, e ouviu os tambores, flautas e sinos dos músicos partas e sassânidas. Suportou os mastros de madeira que prendiam as cordas para os acrobatas e dançarinos, e silenciou sobre as artes praticadas pela hetera quanto o rei a convocava para dançar em seus aposentos íntimos.


Egito

Na história da humanidade, nada deu origem a monumentos mais duradouros do que a demonstração da transitoriedade do homem – o culto aos mortos. Ele está manifestado tanto nos túmulos pré-históricos como nas pirâmides e câmaras mortuárias do Egito . Os músicos e dançarinas, banquetes e procissões e as oferendas sacrificiais retratos nos murais dos templos dedicados aos mortos testemunham a preocupação dos egípcios com um além-mundo onde nenhum prazer terreno poderia faltar.

Ao poderoso pedido aos deuses, expresso nas imagens pintadas e esculpidas, adicionava-se a magia da palavra; invocações a Rá, o deus do paraíso, ou a Osíris, o senhor dos mortos, suplicando para que aquele que partia fosse recebido em seus reinos e que os deuses o elevassem como seu semelhante.

A forma dialogada dessas inscrições sepulcrais, os assim chamados textos das pirâmides, deu origem a excitantes especulações. Permitiria-nos os hieróglifos de cinco mil anos com seus fascinantes pictogramas, fazer inferências a respeito do estado do teatro no Egito antigo? A questão foi respondida afirmativamente desde que o brilhante egiptologista Gaston Maspero, em 1882, chamou a atenção para o caráter “dramático” dos textos das pirâmides. Parece certo que as recitações nas cerimônias de coroação e jubileus (Heb seds) eram expressas em forma dramática. Mesmo a apresentação da deusa Ísis, pronunciando uma fórmula mágica para proteger seu filhinho Hórus dos efeitos fatais da picada de um escorpião, parece ter sido dramaticamente concebida.

Um encantamento de caráter diferente foi decifrado na estela de Metternich (assim chamada por encontrar-se preservada no Castelo de Metternich na Boêmia). É um encantamento popular simples, como os que as mães egípcias pronunciam até hoje quando seus filhos são picados pelo escorpião: “Veneno de Tefen, que se derrame no chão, que não avance para dentro deste corpo...”. Achados como esse e inscrições de cantos funerais e recitações não nos dão chaves para as artes teatrais do Egito, mas , ao contrário, levam a alguma confusão.

A mistura entre a apresentação na primeira pessoa e a forma invocativa em traduções antigas sugeriram, enganosamente, um suposto “diálogo”, de forma nenhuma endossado pelas pesquisas mais recentes. Além disso, às oferendas sacerdotais e aos apelos aos deuses, nas câmaras mortuárias falta o componente decisivo do teatro: seu indispensável parceiro criativo,o público.

Ele existe nas danças dramáticas cerimoniais,nas lamentações e choros pantomímicos, e nas apresentações dos mistérios de Osíris em Abidos, que são reminiscentes da peça de paixão. Todos os anos, dezenas de milhares de peregrinos viajavam a Abidos, para participar dos grandes festivais religiosos. Aqui acreditava-se estar enterrada a cabeça de Osíris; Abidos era a Meca dos egípcios. No mistério do deus que se tornou homem – sobre a entrada da emoção humana no reino do sobrenatural, ou a descida do deus às regiões de sofrimento terreno – existe o conflito dramático e, assim , a raiz do teatro.

Osíris é o mais humano de todos os deuses no panteão egípcio. A lenda finalmente transformou o deus da fertilidade num ser de carne e osso. Como o Cristo dos mistérios medievais, Osíris sofre traição e morte – um destino humano. Depois de terminado o seu martírio, as lágrimas e lamentos dos pranteadores são sua justificativa diante dos deuses. Osíris ressuscita e se torna o governador do reino dos mortos.

Os estágios do destino de Osíris constituem as estações do grande mistério de Abidos. Os sacerdotes organizavam a peça e atuavam nela. O clero percebia quão vastas possibilidades de sugestão das massas o mistério oferecia. Testemunho de sua perspicácia é o fato de que mesmo com toda e cada vez maior popularidade do culto a Osíris, com os crescentes recursos das fundações principescas e com a riqueza de suas tumbas e capelas, continuavam a levar em conta o homem do povo. Qualquer um que deixasse uma pedra ou estela memória em Abidos poderia estar seguro das bênçãos de Osíris e de que, após a morte, participaria, “transfigurado”, das cerimônias sagradas e dos ritos no templo, com sua família, exatamente como havia feito em vida.

Existe uma estela de pedra, do oficial da corte Ikhernofret, que viveu durante o reinado de Sesóstris III, na época da décima segunda dinastia. A estela traz gravadas as tarefas de seu donatário, Ikhernofret, concernentes ao templo em Abidos. A parte superior da pedra comemorativa fala da obra de restauração e reforma do templo, levada acabo por Ikhernofret; a parte de baixo (linhas 17-23) referem-se à celebração dos mistérios de Osíris. Não é possível saber, a partir da inscrição, se as fases distintas do mistério, retratando a vida, a morte e a ressurreição do deus, eram encenadas em sucessão imediata, a intervalos de dias, ou até mesmo de semanas. Heirich Schäfer, o primeiro a interpretar os hieróglifos da pedra, conjeturou que os mistérios de Osíris “se estendiam durante uma parte do ano religioso, como os nossos próprios festivais, indo desde o período do Advento até o Pentecostes, constituindo um grande drama”.

A Pedra, entretanto, esclarece as principais características dos mistérios de Osíris na época do Médio Império (2000-1700 a.C.). O relato começa com as palavras: “Eu organizei a partida de Wepwawet quando ele foi resgatar seu pai”. Parece claro, portanto, que o deus Wepwawet, na forma de um chacal, abria as cerimônias. Imediatamente após a figura de Wepwawet “aparecia o deus Osíris, em toda a sua majestade, e em seguida a ele, os nove deuses de seu séqüito. Wepwawet ia na frente, clareando o caminho para ele...”. Em triunfo, Osíris navega em seu navio, a barca de Neschmet, acompanhado dos participantes das cerimônias dos mistérios. São os seus companheiros de armas em sua luta contra seu inimigo Set.

Se devemos conceber o navio de Osíris como barca carregada por terra, então presumivelmente os guerreiros marchavam ao longo dela. Se a jornada era representada num barco real sobre o Nilo, um número de pessoas privilegiadas subiria a bordo para “lutar” ao lado de Osíris. Ikhernofret, alto oficial do governo e favorito do rei, sem dúvida estava entre esses privilegiados, porque lemos em sua inscrição: “Repudiei aqueles que se rebelaram contra a barca Neschmet e combati os inimigos de Osíris”.

Após este prelúdio, seguia-se a “grande partida” do deus, terminado com sua morte. A cena da morte provavelmente não acontecia às vistas do público comum, como a crucificação no Gólgota, mas em segredo. Porém, todos os participantes uniam-se em alta voz às lamentações da esposa de Osíris, Ísis. Heródoto conta, a respeito da cerimônia de Osíris em Busíris, que “muitas dezenas de milhares de pessoas erguiam suas vozes em lamentos”; em Abidos, deveria haver muitas mais.

Na cena seguinte, o deus Tot chega num navio para buscar o cadáver. Então são feitos os preparativos para o enterro. Morto, Osíris é enterrado em Peker, a pouco mais de um quilômetro de distância do templo de Osíris, contra o pano e fundo da larga planície em forma de crescente de Abidos. Numa grande batalha, os inimigos de Osíris são mortos por seu filho Hórus, agora um jovem. Osíris, erguido para uma nova existência no reino da morte, reentra no templo como o governador dos mortos.

Nada se conhece sobre a parte final dos mistérios, que acontecia entre “iniciados”, na parte interna do templo de Abidos. Como os mistérios de Elêusis, esses ritos permaneceram secretos para o público.

Os festivais do culto de Osíris também aconteciam nos grandes templos das cidades de Busíris, Heliópolis, Letópolis e Sais. O festival de Upuaut, deus dos mortos, em Siut, deve ter tido um processo de procissão similar. Aqui também, a imagem ricamente coberta do deus era acompanhada numa procissão solene até seu túmulo.

A cerimônia do erguimento da coluna de Ded, instituída por Amenófis III e sempre observada solenemente nos aniversários de coroação, possuía também elementos teatrais definidos. O túmulo de Kheriuf em Assasi (Tebas) fornece uma representação gráfica da cena: Amenófis e sua esposa estão sentados em tronos no local do levantamento da coluna. Suas filhas, as dezesseis princesas, tocam música com chocalhos e sistros , enquanto seis cantores louvam a Ptá, o deus guardião do império. A parte inferior do relevo de Kheriuf descreve a conclusão da cerimônia do festival: participantes lutando com bastões, numa cena simbólica de combate ritual, no qual os habitantes da cidade também tomavam parte.

Heródoto, no segundo livro de sua história, descreve uma cerimônia similar, observada em homenagem ao deus Ares, embora, a julgar pelo contexto, o deus em questão deva ter sido Hórus. Essa observação, conservada em Papremis, envolve também o combate ritual:

Em Papremis, celebram-se sacrifícios como em qualquer lugar, mas quando o sol começa a se pôr, alguns sacerdotes ocupam-se da imagem do deus; todos os outros sacerdotes, armados com bastões de madeira, ficam à porta do templo. Diante deles se coloca uma multidão de homens, mais de mil deles, também armados com bastões, que tenham algum voto a cumpri. A imagem do deus permanece num pequeno relicário de madeira adornado, e na véspera do festival é, conforme dizem, transportada para outro templo. Os poucos sacerdotes que ainda se ocupam da imagem colocam-na, juntamente com o relicário, num carro com quatro rodas e a levam para o templo. Os outros sacerdotes, que permanecem à porta, impedem-nos de entrar, mas os devotos lutam ao lado do deus e atacam os adversários.Há uma luta feroz, onde cabeças são quebradas e não são poucos os que, acredito, morrem em conseqüência dos ferimentos. Os egípcios, porém, negavam que ocorressem quaisquer mortes”.

O fanatismo ritual que essa cena sugere recorda os ferimentos auto-infligidos das peças xiitas de Hussein, na Pérsia, e os flagelantes da Europa medieval.

Através das épocas do esplendor e declínio dos faraós, o egípcio permaneceu um vassalo dócil. Aceitou as leis impostas pelo rei e os preceitos do seu sacerdócio como mandamentos dos deuses.Esse paciente apego à tradição sufocou as sementes do drama. Para um florescimento das artes dramáticas teria sido necessário o desenvolvimento de um indivíduo livremente responsável que tivesse participação na vida da comunidade, tal como encorajado na democrática Atenas. O cidadão da polis grega, que possuía voz em seu governo, possuíam também a possibilidade de um confronto pessoal com o Estado, com a história, com os deuses.

Faltava ao egípcio o impulso para a rebelião; não conhecia o conflito entre a vontade do homem e a vontade dos deuses, de onde brota a semente do drama. E, por isso, no antigo Egito, a dança, a música e as origens do teatro permaneceram amarradas às tradições do cerimonial religioso e da corte. Por mais de três mil anos as artes plásticas do Egito floresceram, mas o pleno poder do drama jamais foi despertado. (O teatro de sombras, que surgiu Egito durante o século XII d.C., proporcionou estímulos para a representação de lendas populares e eventos históricos. Sua forma e técnica foram inspiradas pelo Oriente).

Foi esta compulsão herdada para a obediência que finalmente subjugou Sinuhe, um oficial do governo de Sesóstris I que ousara fugir para o Oriente Próximo. “Uma procissão funeral será organizada para ti no dia do teu enterro”, o faraó o informou: “o céu estará sobre ti quando fores colocado sobre o esquife e os bois te levarem, e os cantores irão à tua frente quando a dança muu for executada em teu túmulo...”. Sinuhe regressou. A lei que havia governado o desempenho do seu ofício foi mais forte que a rebelião: o poder da tradição esmagou a vontade do indivíduo.

Assim não há indício, e na verdade é contra qualquer probabilidade, que desde esse ponto pudesse seguir-se uma trilha mesmo aproximadamente parecida com aquela que, na Hélade, a partir de uma origem similar na religião, levou ao desenvolvimento da tragédia ática. Para chegar a isso, o primeiro degrau precisaria ter sido uma extensão do mito de modo que contivesse o homem e, depois, um modo particular de ser humano; nenhuma das duas coisas foi encontrada no Egito". (S.Morenz).


Mesopotâmia

No segundo milênio a.C., enquanto os fiéis do Egito faziam peregrinações a Abidos e asseguravam-se das graças divinas erigindo monumentos comemorativos, o povo da Mesopotâmia descobria que o perfil de seus deuses severos e despóticos estava ficando mais suave. Os homens começavam a creditar a eles justiça e a si mesmos, a capacidade de obter a benevolência dos deuses. Estes estavam descendo à terra, tornando-se participantes dos rituais. E, com a descida dos deuses, vem o começo do teatro.

Um dos mais antigos mistérios da Mesopotâmia é baseado na lenda ritual do “matrimônio sagrado” – a união do deus ao homem. Nos templos da Suméria, pantomima, encantamento e música converteram a tradicional representação do banquete para o par divino e humano num grande drama religioso. Os governantes de Ur e Isin fizeram derivar sua realiza divina deste “casamento sagrado”, que o rei e a rainha (ou uma grã sacerdotisa delegada por comando divino) solenizavam após um banquete ritual simbólico.

De acordo com pesquisas recentes, o famoso estandarte-mosaico de Ur, do terceiro milênio a.C., é uma das mais antigas representações do “casamento sagrado”. Essa magnífica obra, com suas figuras compostas por fragmentos de conchas e calcários incrustados num fundo de lápis-lazúli, data de aproximadamente 2700 a.C. e provavelmente foi parte da caixa de ressonância de algum instrumento musical, mais do que um estandarte de guerra.

Do segundo milênio em diante, o “casamento sagrado” foi quase com certeza celebrado uma vez por ano nos maiores templos do império sumeriano. Sacerdotes e sacerdotisas faziam os papéis de rei e rainha, do deus e da deusa da cidade. Não se sabe onde foi traçada a linha divisória entre o ritual e a realidade, mas é certo que o rei Hamurabi (1728-1686 a.C.), o grande reformador da lei sumeriana, riscou o festival do “casamento sagrado” do calendário de sua corte. Hamurabi estabeleceu um novo ideal de realiza: descreveu a si mesmo como um “príncipe humilde, temente aos deuses”, como um “pastor do povo” e “rei da justiça”. Hamurabi nomeou Marduk, até então o deus da cidade da Babilônia, deus universal do império. Um diálogo sumério, que se acredita ter sido uma peça e intitulado A Conversa de Hamurabi com uma Mulher , é devotado ao criador do Código de Hamurabi e é considerado pelos orientalistas um drama cortesão. Retrata a astúcia feminina triunfando sobre um homem brilhante, apaixonado, ainda que envergue os esplêndidos trajes de um rei. É possível que o diálogo tenha sido encenado em alguma corte real rival, ou, após a morte de Hamurabi, até mesmo no palácio na Babilônia. Outro famoso documento sumério, e poema épico em forma de diálogo, Enmerkar e o Senhor de Arata, pode também ter sido um drama secular, apresentado na corte real do período de Isin-Larsa.

É certo que na Mesopotâmia os músicos da corte, tanto homens quanto mulheres, desfrutavam dos favores especiais dos soberanos. Nos templos, sacerdotes vocalistas, jovens cantoras e instrumentistas de ambos os sexos executavam a música ritual nas cerimônias e eram tratados com grande respeito. Uma filha do imperador acádio Naram-Sin é referida como “harpista da deusa lua”. As artes plásticas da Mesopotâmia dão testemunho da riqueza musical que exaltava “a majestade dos deuses" nos grandes festivais. O fato de os artistas do templo serem investidos de uma significação mitológica especial é sugerido pelos musicistas com cabeças de animais sempre vistos em relevos, selos cilíndricos e mosaicos. Os mesopotâmios possuíam um senso de humor desenvolvido. Um diálogo acádio, intitulado O Mestre e o Escravo, assemelha-se ao mimo e às farsas atelanas, o Plauto e à Commedia dell’arte. Os trocadilhos do servo expõem a vacuidade dos pretensos bons conselhos e a relatividade das decisões “bem consideradas”. Recentemente, mais exemplos do teatro secular da Mesopotâmia vieram à luz. O erudito alemão Hartmut Schmökel, por exemplo, interpretou a assim chamada Carta de um Deus como uma brincadeira de um escriba, um outro texto que soava como religioso como um tipo de sátira e um poema heróico como uma paródia grotesca.

As disputas divinas dos sumérios possuem um caráter definitivamente teatral. Até agora foram descobertos sete diálogos desse tipo. Todos eles foram compostos durante o período em que a imagem dos deuses sumérios tornou-se humanizada, não tanto em sua aparência externa quanto em suas supostas emoções. Este critério é crucial numa civilização: é a bifurcação na estrada de onde se ramifica o caminho para o teatro – pois o drama se desenvolve a partir do conflito simbolizado na idéia dos deuses transposta para a psicologia humana.

Em forma e conteúdo, os diálogos sumérios consistem na apresentação de cada personagem, a seu turno, exaltando seus próprios méritos e subestimado os do outro.

Em um dos diálogos, a deusa do trigo, Aschnan, e seu irmão, o deus pastor Lahar, discutem a respeito de qual dos dois é mais útil à humanidade. Em outros, o abrasador verão da Mesopotâmia tenta sobrepujar o brando inverno da Babilônia. Num terceiro, o deus Enki briga com a deusa mãe. Ninmah, mas mostra ser um salvador no grande tema fundamental da mitologia, e retorno do ínfero. Num quarto diálogo, Inana, a deusa da fertilidade, banida para o mundo das sombras, poderá retornar à terra se puder encontrar um substituto. Ela escolhe para este propósito o seu amor, o pastor real Dumuzi, que assim é apontado príncipe do inferno. Com a lenda de Inana e Dumuzi, o ciclo se encerra e termina no “casamento sagrado”. Inana e Dumuzi são o par sagrado original.

Mesmo os sacerdotes mais bem instruídos do período não eram capazes de fazer um conspecto do vasto panteão do antigo Oriente, com seus inumeráveis deuses principais e subsidiários das muitas Cidades-estados separadas. As relações mitológicas são muito mais complexas do que, por exemplo, aquelas existentes entre os conceitos mitológicos da Antigüidade e os do cristianismo primitivo.

No início do século XX, o erudito Peter Jensen procurou estabelecer uma conexão entre Marduk e Cristo, mas não teve sucesso. A assim chamada controvérsia Bíblia-Babel fundamentou-se na suposta existência de um drama ritual que celebrava a morte e a ressurreição de Marduk. Porém, as últimas pesquisas provaram que a interpretação textual em que se assentava esta suposição é insustentável.

No reino de Nabucodonosor, o famoso festival do Ano Novo , em homenagem ao deus da cidade da Babilônia, Marduk , era celebrado em pompa espetacular. O clímax da cerimônia sacrificial de doze dias era a grande procissão, onde o cortejo colorido de Marduk era seguido pelas muitas imagens culturais dos grandes templos do país, simbolizando “uma visita dos deuses”, e pela longa fila de sacerdotes e fiéis. Em pontos predeterminados no caminho pavimentado de vermelho e branco da procissão, até a sede do festival do Ano Novo, a comitiva se detinha para as recitações do epos da Criação e para as pantomimas. Este grande espetáculo cerimonial homenageava os deuses e o soberano, além de assombrar e emocionar o povo. “Era teatro no ambiente e no garbo do culto religioso e demonstra que os antigos mesopotâmios possuíam, pelo menos, um senso de poesia dramática; é preciso que se faça pesquisas mais amplas sobre o culto” (H. Schmökel).

Durante o terceiro e o segundo milênios a.C., outras divindades do Oriente Próximo foram homenageadas de forma semelhante em Ur, Uruk e Nippur; em Assur, Dilbat e Harran; em Mari, Umma e Lagash. Persépolis, a antiga necrópole e cidade palaciana persa, foi fundada especialmente para a celebração do festival do Ano Novo. Aqui, no final do século VI a.C., Dario ergueu o mais esplêndido dos palácios reais persas. E aqui Alexandre, sacrificou a idéia ocidental de humanistas à sua ebriedade com a vitória; após a batalha de Arbela, deixou que o palácio de Dario se consumisse nas chamas.

O próximo artigo desta série é AS CIVILIZAÇÕES ISLÂMICAS

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